
Há um ano, a Câmara Municipal de Loures demoliu várias casas no Talude, um bairro autoconstruído
que cresce na Área Metropolitana de Lisboa, como já havia feito inúmeras vezes em anos anteriores.
O Talude é, há muito, um lugar de luta por dignidade habitacional e a acentuada subida dos preços da
habitação fê-lo crescer. Numa altura de Estratégias Locais de Habitação, Primeiro Direto e PRR, a
resposta da Câmara foi pontual e certeira: demolir, demolir, demolir. Mesmo sabendo que é
impossível viver noutro lugar para quem, como estas famílias, vive do seu trabalho, a Câmara e a
Segurança Social apresentam como única solução, quando pressionadas pelo movimento social, o
realojamento temporário em quartos de pensões ou em centros de emergência social. Também
acontece oferecerem bilhetes de volta para o país de origem ou o valor de uma renda e uma caução a
quem conseguir apresentar um contrato de arrendamento formal, coisa mais ou menos impossível já
que muitos senhorios pedem várias rendas de avanço, um fiador ou uma conta bancária bem
recheada. Além de, como se sabe, não existirem casas acessíveis a quem ganha salários baixos ou
mesmo médios.
Há precisamente um ano, Ana Paula viu ser demolida a sua casa no bairro do Talude, o teto que havia
construído para si e para as suas três filhas (de 18, 10 e 5 anos) quando a senhoria lhe aumentou a
renda para um preço incomportável para o seu salário (mínimo). A única resposta da Câmara de
Loures foi o realojamento temporário numa pensão no centro de Lisboa, longe do seu quotidiano e
das escolas das suas filhas, em Camarate. Esta mudança para uma mãe, de baixa por gravidez de
risco, custaria longos deslocamentos e uma pequena fortuna, já que na pensão não se podia cozinhar
ou lavar roupa. Custou também uma reorganização da vida familiar, na altura confinada a dois
quartos de dormir, sem espaço adequado a brincadeiras ou trabalhos escolares. Perante isto, e sempre
sob grande pressão estatal, Ana Paula, como muitas outras mães, percorreu sites de imobiliárias e
muitos bairros a pé, só para confirmar o que já sabia: que um T1 na periferia estava acima das suas
possibilidades e que quando tentava visitar uma casa, nenhuma estava disponível para receber uma
mulher negra com três filhas.
Quando se aproximou o nascimento do bebé, a pressão aumentou dramaticamente. Inicialmente foi-
lhe dito que se não conseguisse uma casa até ao parto corria o risco de o bebé ficar retido na
maternidade e, mais tarde, que ela poderia sair com o bebé para uma casa abrigo, mas onde as três
meninas não teriam lugar. Pelo que seriam separadas e colocadas numa instituição – o que iria
acontecer enquanto a mãe estivesse na maternidade, já que não seria autorizado que elas ficassem as
três na pensão durante os dois dias de internamento pós-parto. É este o apoio social adequado a uma
família empobrecida e a uma gravidez de risco? No entanto, a Ana Paula trabalha há quase 10 anos
como cuidadora num lar de idosos, com contrato e descontos.
O caso foi denunciado publicamente quando o bebé nasceu. Acolhido pela comunicação social, mais
de três mil pessoas se solidarizaram de imediato, assinando uma carta que pedia aos poderes públicos
que cumprissem a Lei, apoiando uma família num momento de especial vulnerabilidade. Mais, que
se reconhecesse que o que levou esta família – e muitas outras – a este beco sem saída nada tem de
responsabilidade individual, antes é uma consequência de políticas públicas que fomentaram o fosso
entre os preços das casas e os rendimentos do trabalho. Acreditamos ter sido esta onda solidariedade e a coragem de Ana Paula e da sua família que impediu o inominável: mãe e filho voltaram para a
pensão. Contudo, isto foi há seis meses.
E agora? Começou o novo ano letivo e Ana Paula recomeçou a trabalhar, finda a sua licença de
maternidade. Ao mesmo tempo, a família foi transferida para um Centro de emergência social, noutro
ponto da cidade, habitando agora as 5 pessoas um único quarto. No centro dão alimentação, mas a
rede de transportes públicos tornou, na prática, impossível a pontualidade tanto na escola como no
emprego. Para além da ansiedade e do cansaço, dois dias após a entrada no Centro começaram a
aparecer nos seus corpos picadas de bichos– a médica do centro de saúde foi perentória: é urgente
uma desinfestação de todo o Centro. O que obrigou a família a deslocar-se de novo para a pensão que
habitavam antes. A desinfestação limitou-se ao quarto de quem, até à data da admissão, não
apresentava picadas, criando a absurda suspeita de que teria sido a família a contaminar o local.
Bem sabemos que a solução para que se restabeleça a dignidade desta família começa por uma casa
digna que possam pagar, ou seja uma habitação pública. Mas enquanto a família aguarda, há
programas como o Porta de Entrada que poderiam ser uma solução temporária, mas que a Câmara
teima em ignorar. No mínimo, poderiam manter-se na pensão de onde lhes é possível manter os
compromissos de trabalho e escolas –e onde, até agora, se mantiveram isentas de picadas.
A história de Ana Paula não é única, nem tão pouco rara. É a história de uma mãe que trabalha,
desconta, educa e ama os seus filhos e que reside num país que se preocupa com a baixa natalidade,
mas que vigia, desapoia, precariza e pune sob a égide da proteção. Por tudo isto, é urgente um círculo
de solidariedade e partilha entre mulheres apoiadas pela segurança social. Estamos a construí-lo,
juntem-se, todas são bem vindas!