Na passada terça-feira, a Habita recebeu um pedido urgente de um morador do Bairro Alfredo Bensaúde nos Olivais: estavam a ser despejadas várias famílias que iriam ficar na rua por não terem alternativa.
Nesse mesmo dia visitámos o bairro juntamente com a Stop Despejos e falámos com os moradores. Confirmámos que tinham sido despejadas 9 famílias, cerca de 40 pessoas, na sua grande maioria crianças incluindo bebés recém-nascidos. Tinham sido, literalmente, postas na rua. Estavam já, quando estivemos com elas, a improvisar onde dormir nessa mesma noite: carros e toldos de lona, directamente sobre o alcatrão da rua. É onde dormem desde então. Dali as crianças saem para a escola, quem trabalha, para o emprego. Em condições de grande igualdade com os colegas…
As casas de onde foram expulsas são habitações públicas ao cuidado da Gebalis e foram mantidas vazias durante vários anos, tornando possível e até racional que, na falta absoluta de alternativa habitacional, entrassem, fizessem trabalhos de reabilitação e as tivessem restituído ao uso para que foram feitas: abrigar um lar familiar. Algumas destas famílias habitavam estas casas há 5 ou 10 anos e tentaram por diversas vezes legalizar a sua situação junto da CM Lisboa, ao mesmo tempo que se inscreviam em programas de apoio à habitação. Sem sucesso.
Os despejos iniciaram-se a 28 de Fevereiro, sem aviso prévio, e com a ordem “saiam todos para a rua!”. As famílias saíram sem oferecer resistência, ficando desde então na rua. Alegam que a Polícia destruiu o interior de muitas das casas de onde foram despejadas para evitar, explicaram, que voltassem a ser ocupadas. Para a CMLisboa é preferível ter casas abandonadas e sujeitas ao vandalismo que habitadas e conservadas.
Não lhes foi dada qualquer alternativa de alojamento, nem permanente nem temporário. Nem por parte da CMLisboa, nem pelos serviços sociais. Sabemos ainda que muitas outras famílias estão ainda em risco de expulsão nos próximos dias no mesmo bairro.
Algumas destas famílias são ciganas, o que torna tudo mais grotesco: o estado que as despeja, enuncia estratégias para integração da comunidade cigana, espelhando bem o racismo a que a comunidade cigana tem sido sujeita: estrutural, institucional, permanente. Que todos consentem, a própria comunicação social, com poucas excepções, não considera importante ir localmente verificar. Os ciganos estão habituados a viver na rua, não há motivo para escândalo.
Contradições entre o discurso e a prática:
A recém-aprovada Lei de Bases da Habitação diz que a política de habitação integra medidas de proteção especial dirigidas a famílias com menores, monoparentais ou numerosas. Diz ainda que estas pessoas têm direito a “atendimento público prioritário pelas entidades competentes e ao apoio necessário, após análise caso a caso, para aceder a uma habitação adequada.” Neste caso, mais uma vez e como de costume, a promover o despejo estava a polícia em força (Polícia Municipal e Polícia de Choque), não se viram técnicos sociais, nem análise caso a caso. Nem tão pouco qualquer disposição para o diálogo, tanto por parte da Gebalis como da CMLisboa.
As moradoras e moradores por todos os meios tentaram esse diálogo para encontrar em conjunto alternativas de habitação adequada. A Gebalis recusou o atendimento, informando que não tinha soluções.
Dirigiram-se à CMLisboa: por duas vezes não houve ninguém que os recebesse a não ser novamente a polícia, que as expulsou. Não querem ouvir estes moradores, ninguém dá a cara, nem mesmo depois de lhes terem retirado as condições mínimas de sobrevivência.
Ainda não nos foi possível apurar o número exacto de pessoas já despejadas. A Pastoral dos Ciganos trabalha, neste momento, no levantamento que um serviço público responsável teria previamente feito.
Nós, associação Habita e Stop Despejos, condenamos estes despejos forçados e denunciamos esta situação de discriminação da população cigana. Vamos estudar o caso no sentido de apresentar queixa por violação de direitos humanos.
Acrescentamos que temos conhecimento que neste momento há muitas centenas de casas ocupadas no parque habitacional da CMLisboa e isto deve-se a vários factores: existe uma crise profunda na habitação, as pessoas não têm alternativas habitacionais, e a autarquia deixou ao abandono mais de um milhar de casas durante largos anos. Assim, hoje, o problema não foi criado pelas vítimas que ocupam casas e são despejadas de forma violenta, expondo as crianças a este trauma. A falha é da autarquia e do governo que têm de encarar o problema estrutural da habitação em Lisboa e que podem resolver de forma política esta questão. Com a irresponsabilidade acrescida de atribuir casas que sabe estarem ocupadas.
A solução não pode nunca passar por mandar pessoas para a rua sem alternativa, ao arrepio da legislação fundamental de defesa dos direitos humanos e do superior interesse das crianças.
O argumento de que as casas serão atribuídas a outras pessoas é irresponsável porque procura promover a divisão e colocar famílias contra famílias, pobres contra pobres. Além do mais, é um argumento que estigmatiza ainda mais uma comunidade que já sofre com o racismo, do qual a sociedade portuguesa está a perder a vergonha com narrativas racistas e xenófobas cada vez mais normalizadas nos meios de comunicação social, redes sociais, e afins. Que a CMLisboa colabore nessa normalização é, para nós, um escândalo também.
E finalmente, é um falso argumento porque, como sabemos, as casas foram mantidas vazias durante anos e nenhuma família expulsou outra família para libertar a casa. Tudo começa com a irresponsabilidade de deixar casas ao abandono, neste tempo de crise intensa de habitação. Quem de nós, se dormisse ao relento com as suas crianças e visse uma casa abandonada, não entrava? Este simples facto, bem contado num filme, faria destas famílias heroínas de resistência. É o que são, na realidade. Algumas já sofreram mais de uma vez este processo violento de ver a sua casa destruída, as suas coisas espalhadas e na presença das crianças. Se se expõem a que lhes aconteça de novo é porque não se lhes apresentam alternativas. Como todas as famílias, precisam de condições para viver, para criar os filhos, mandá-los para a escola limpos e tratados.
Reiteramos:
Não pode haver despejos sem solução alternativa e sem o cumprimento dos direitos fundamentais. Quem está a ser despejado não é culpado, é vítima.
A CMLisboa é responsável por encontrar as soluções para resolver esta tragédia.
Mas interpelamos também o governo, que é o garante do direito constitucional da habitação. E que, por outro lado, tem de assegurar, por meio da Segurança Social, o apoio de vida quando o resto falha.
E todas as instituições nacionais e públicas que deviam funcionar para impedir esta tragédia.
Apelamos a todas e a todos, pessoas individuais e colectivos, para que tomem posição: juntem-se à Habita e à STOP Despejos neste protesto, escrevam à CMLisboa e ao Governo para que ponham fim a esta tragédia.