As rendas ditas acessíveis começaram hoje. São contratos a que o proprietário pode aderir voluntariamente através de inscrição numa plataforma e que estabelecem preços de renda que não vão para além dos 80% da mediana do mercado na freguesia, com preços máximos fixados por tabela, ficando desta forma sujeitos a isenção total de impostos em sede de IRS ou IRC.
No entanto, e lamentavelmente, este programa não vai funcionar nos locais onde a habitação faz mais falta e não responde a quem mais precisa.
De acordo com o Governo, o programa rendas acessíveis é direcionado a pessoas cujo “rendimento máximo admitido seja 35 mil euros brutos anuais, aumentando para 45 mil euros no caso de duas pessoas. A partir daí, aumenta 5 000 euros brutos anuais por cada pessoa extra que integre o agregado”.
Simultaneamente, a “renda não pode ser inferior a 15% nem ser superior a 35% do rendimento médio mensal bruto do agregado”.
De acordo com a tabela de rendas máximas em cada concelho, a renda acessível em Lisboa para um T2 é de 1 150 euros. Imaginemos então um T2 em Lisboa, a ser arrendado por um casal com uma criança. Para ficar com uma taxa de esforço de 30% teria de ganhar mensalmente 3 833 euros, ou seja, anualmente, sem contarmos com subsídio de férias e de natal, teria de contar com 46 000 euros. Ora, isto não seria possível porque excede os valores limite de rendimentos. Vejamos então se ficasse com uma taxa de esforço de 35%, o máximo permitido, teria então que ter o rendimento de 3.285 euros, e anualmente 39.428 euros. Ou seja, em Lisboa as famílias que podem entrar no programa deverão estar nesta ordem de rendimentos brutos.
Muito provavelmente, os senhorios não vão cobrar voluntariamente rendas mais baixas do que o Governo disse que seria uma renda acessível. Este valor máximo é feito a partir do estudo que o governo faz sobre o que são as médias e medianas actuais do concelho, por isso o chamado “acessível” anda nessa faixa e não abaixo.
Mas se a família for para a Amadora e procurar um T2 – que pode ter, segundo o Governo, rendas acessíveis até 775 euros – , então o agregado tem que ter um rendimento de 2.583 euros por mês, o que corresponde, novamente, aos rendimentos mais elevados da população, cerca de 30.300 euros por ano.
Isto significa que estas rendas acessíveis, nos locais de maior pressão imobiliária e demográfica, são para o quintil de população de rendimentos mais elevados do país. Vejamos: se dividirmos a população em cinco partes e organizarmos as cinco partes de acordo com os seus rendimentos [1]: o primeiro quintil de população corresponde aos 20% de agregados com os rendimentos mais baixos na sociedade, que vão de nenhum rendimento até aos 6.072 euros por ano; o segundo quintil da população não vai além dos 9.103 euros anuais; o terceiro quintil não ultrapassa os 13.814; e o quarto quintil não ultrapassa os 23.549 euros anuais. Estes números mostram a realidade triste dos rendimentos em Portugal, mas também demonstram que as rendas acessíveis – nas áreas onde a habitação faz mais falta e onde é mais cara, só pode ser para os 20% mais ricos da população, que não são quem procura desesperadamente uma casa.
Agora, se uma família procurar um empréstimo à habitação para um crédito de 200 mil euros, a prestação fica, grosso modo, em torno dos 700 euros mensais, a 30 anos.
As famílias com rendimentos desta ordem podem não ser riquíssimas, mas podem optar por comprar uma casa, ter uma casa segura cujo contrato não vai terminar ao fim de apenas cinco anos e, ao mesmo tempo, pagar uma mensalidade mais baixa e, simultaneamente, acumular um ativo – a casa – para a família.
Simultaneamente, 24% da população do primeiro quintil de rendimentos, que não vai além dos 6.072 euros, paga mais de 40% do seu rendimento mensal bruto em despesas de habitação, segundo a Eurostat. Isto significa que 24% da população, que tem os rendimentos mais baixos, terá muitas dificuldades em ter para comer, depois de pagar a renda. A carga de esforço desce a pique para os escalões seguintes. Os últimos escalões, o 4º e 5º quintil da população com os rendimentos mais elevados têm uma sobrecarga abaixo de 1%.
Não basta dizer que todas estas pessoas serão encaminhadas para o programa 1º direito. Este programa trata do desenvolvimento de mais habitação social, aqui com rendas estabelecidas diretamente de acordo com os seus rendimentos, e requer um investimento muito considerável por parte do Estado e das autarquias (sobretudo agora que o PS colocou de parte a requisição a privados de casas vazias e sem uso). Devido aos constrangimentos a que Portugal aceita se sujeitar no âmbito das imposições europeias, o orçamento é totalmente insuficiente para a habitação e tudo indica que assim vai continuar. Mudar isso, seria mudar estruturalmente o orçamento e, como já foi dito no parlamento, isso não vai acontecer. Além disso, o levantamento que serve de base ao 1º direito [2] teve fraca adesão das autarquias (apenas metade respondeu e muitas a custo), e estas não estão a levar em consideração todas as necessidades do concelho por vários motivos: 1) o levantamento tratava apenas a habitação precária; 2) o programa implica que as autarquias têm de fazer um esforço financeiro muito considerável, para o qual não estão preparadas; 3) outras autarquias não estão interessadas em realojar alguma população por puro racismo (nós conhecemos bem alguns casos); 4) o levantamento não contabiliza as muitas famílias em carga de esforço excessiva, nem aqueles que já desistiram de pedir casa às autarquias, ou muitas famílias monoparentais que não têm como pagar a habitação, nem os casos de sobrelotação; também não faz uma estimativa dos despejos que estão a acontecer devido à onda especulativa que galga muitas cidades do país.
O 1º direito vai arrancar muito muito lentamente, e vai desenvolvendo respostas a conta-gotas. Não responde à aflição que se vive atualmente. Faltam medidas de emergência para a crise e desespero que muita gente vive no momento.
Ainda sobre as rendas ditas acessíveis, os proprietários já vieram dizer que não estão interessados em colocar as suas casas nesta bolsa. De acordo com António Frias Marques, presidente da Associação Nacional de Proprietários, “Já se sabe que não acreditamos nisto. Quanto a nós não vai ter o mínimo sucesso (…) Para já, não há casas e as que aparecem têm rendas relativamente elevadas. E não é pelo facto de os senhorios terem de arrendar a um valor 20% mais baixo que vai compensar em relação ao imposto — porque há senhorios que até pagam menos. Isto não é negócio”.
As rendas acessíveis são um jogo de palavras na propaganda política – todos gostariam de ter uma renda acessível, mas o diabo está na sua definição – e enquanto o Governo anuncia rendas acessíveis para os ricos, evita a regulação a sério dos preços, essa sim, medida que ajudaria a equilibrar o mercado, assim como a criar verdadeira estabilidade nos contratos. Vivemos hoje a chantagem do mercado e a subserviência do Governo a este. Como disse António Costa, não se pode colocar em causa a liberalização do mercado de arrendamento [3]. O mercado dita as leis e o Governo acomoda-as, procurando dar incentivos atrás de incentivos (para coisas que nem nos convêm), em vez de regular e colocar rédeas à onda absurda e insustentável de especulação, assim como estabelecer e equilibrar direitos e deveres de todas as partes, garantindo os direitos fundamentais.
Notas
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[2]
[3]