Arroios, Lisboa, meados de abril de 2020. Face às medidas de recolhimento obrigatório incluídas no estado de emergência em resposta à pandemia de covid-19, o bairro – onde moro há mais de três anos – está mais tranquilo que normalmente: quase não há carros a circular, os bares estão fechados ou servem os poucos clientes à porta. Porém, os muitos supermercados, mercearias, lojas de bairro têm movimento, ou até fila; pessoas na rua há menos que dantes, mas há-as, de todas as idades, géneros, origens.
Baixa e Alfama, Lisboa, meados de abril de 2020. Silêncio. De vez em quando, passa um autocarro ou elétrico. Não se encontram lojas abertas, enquanto passo a correr, não encontro outras pessoas. O dono de um restaurante na Baixa confessa que, desde o início da pandemia, apercebeu-se que já não há habitantes no bairro – e, portanto, clientes. Em frente a Santa Apolónia, um cruzeiro, o terminal que acaba de estrear, desertos, parecem relíquias de um passado remoto.
Arroios e a Baixa encontram-se a poucos quilómetros de distância, mas parecem, hoje, ser dois mundos: um mundo urbano, com os seus problemas e recursos; e um mundo de fluxos que já não existem. Atenção, não quero romantizar Arroios, um bairro que tem imensos problemas e que também sofreu uma enorme pressão imobiliária nos anos recentes – tornaram-se nestes dias conhecidas as muitas pensões sobrelotadas onde vivem imigrantes e refugiados. Porém, neste post quero enfatizar uma das muitas dimensões da tempestade perfeita que arrasou Lisboa nos últimos anos.
Grupos ativistas como Habita – e, por ser honestos, meia dúzias de investigadores e políticos – andaram a avisar durante muitos anos que a excessiva dependência do turismo e de outras atividades parecidas, além de ser problemática pelo tipo de crescimento económico e de ocupação que estava a promover, era também altamente perigosa. Os impactos desta pandemia são precisamente a concretização desse perigo. Se o impacto económico e social será enorme em todo o mundo, começamos a ver que será mais profundo em territórios que estavam especialmente dependentes, a muitas escalas.
À escala nacional, Portugal deverá ser dos países onde o PIB mais cairá – o FMI previa 8 por cento há poucas semanas, o que não pode surpreender precisamente pelo enorme peso que o turismo e atividades parecidas chegaram a ter na economia nacional: em 2018, terá chegado ao 15 por cento do PIB.
À escala local, está a expressar-se o impacto da enorme fragilização devida ao esvaziamento dos tecidos urbanos: onde há pouquíssimos habitantes, é especialmente difícil organizar as redes de vizinhança tão cruciais para a população mais fragilizada; onde não há comércio retalhista, para obter os bens essenciais os poucos habitantes são obrigados a deslocar-se do seu bairro ou a aglomerar-se nas poucas lojas.
Também do ponto de vista da propriedade esta situação vai aprofundar os problemas que vinham de trás: os pequenos comerciantes e senhorios que converteram-se ao turismo serão os primeiros a ter que declarar bancarrota, e quando o turismo regressar, o comércio e o alojamento local poderão ser ainda mais concentrados nas mãos dos grandes actores.
Finalmente, o processo de esvaziamento do centro torna ainda mais complexo o trabalho dos ativismos de bairro, que precisam de massa crítica para se organizar. Porém, os ativismos são mais importantes do que nunca, para exigir do Estado medidas necessárias para permitir uma reconversão dos territórios urbanos a uma economia mais sustentável e justa: requisitar os AL para ajudar as necessidades de isolamento; suportar, através de medidas fiscais e de regulação, a transição dos fogos do turismo para a habitação; acabar com todos os incentivos a fundos imobiliários e que especulam com habitação, repor todo o parque habitacional no mercado habitacional.