Fingir a resolução de uma crise de habitação. A luta tem de continuar!

‘Intendente Insurgente a caminho Housing Action Day 2023’
Fevereiro 27, 2023
Família com três crianças é despejada em Loures. Câmara recusa pedido de habitação social
Março 2, 2023
Mostrar tudo

O que podemos ver neste pacote de medidas é que temos o Estado a subsidiar a especulação – inclusivamente a comprar casas a preços especulativos, como António Costa já admitiu.

É sintomático que num período em que são convocadas várias manifestações em torno do aumento do custo de vida, da habitação e por salários dignos, o Governo venha apresentar apressadamente, com grande pompa e circunstância, mais um pacote de medidas que promete resolver o problema do acesso à habitação [1].

Mas que tipo de medidas são estas agora apresentadas?

Consegue-se identificar o seguinte conjunto de medidas:

1) incentivos com enormes reduções e borlas fiscais aos privados para os tentar convencer a colocar a habitação no mercado de arredamento e no chamado “arrendamento acessível” (que não o é);

2) cedência de terrenos públicos a privados para mais construção;

3) maior liberalização da construção, diminuindo o controlo dos projectos e da qualidade;

4) subsídios às rendas e prestações hipotecárias, pondo mais uma vez o orçamento público a pagar as rendas e os juros altos;

5) criação de um mecanismo para o arrendamento forçado de casas vazias, que vemos com gosto, mas tudo dependerá do que vai ser efetivamente posto em lei (a distância entre o que se diz e o que se faz e como se faz é muitas vezes grande);

6) o fim dos “vistos gold”, quando, na verdade, já foi possível constatar pelas declarações do primeiro-ministro que apenas mudará o nome e enquadramento, mas o mecanismo manter-se-á, uma vez que continuará a existir a autorização de residência para investimento externo, que poderá ser feito via fundos de investimento imobiliário, repercutindo-se no preço da habitação;

7) ensaio de um controlo do aumento das rendas, aplicadas aos novos contratos, limitados a um aumento de cerca de 5%, apenas abrangendo os contratos celebrados nos últimos cinco anos. Isto indica que o primeiro-ministro quer manter as rendas altas, nos níveis em que estão – ou seja, rendas impossíveis de pagar;

8) Incentivar, e apenas incentivar sem qualquer vínculo, novamente com borlas fiscais, a passagem de casas em regime de Alojamento Local para o arrendamento privado, mas de forma suave e estendida pelo tempo;

9) obrigar os bancos a apresentarem taxas de juro fixas nos créditos à habitação, mas a taxas que serão definidas pelos próprios bancos (e por isso não muda nada nesse domínio);

O que podemos ver neste pacote de medidas é que temos o Estado a subsidiar a especulação – inclusivamente a comprar casas no mercado a preços especulativos, como António Costa já admitiu. Mas mais: temos enormes isenções fiscais aos privados e subsídios às rendas e empréstimos, evitando assim a regulação necessária ou tocar nas medidas que favorecem os preços altos. Temos dúvidas de que o Orçamento do Estado, que nunca dá para nada, que é reduzido na Saúde e na Educação, venha agora a pagar tamanha factura.

António Costa finge acabar com os “vistos gold”, mantendo o regime noutros moldes. Não toca no regime fiscal para residentes não habituais, nem no recentemente aprovado pacote de incentivos aos nómadas digitais com rendimentos elevados. Não mexe nos incentivos fiscais aos fundos de investimento e às empresas imobiliárias que só constroem para o luxo. Estas são as políticas de apoio aos preços altos na habitação.

Ao mesmo tempo que vemos estas medidas falaciosas serem proclamadas pelo Governo, a direita parlamentar sente-se indignada com o “ataque claro” e a “agressão insustentável à propriedade privada”que as medidas constituem – não havendo no pacote de medidas sequer nenhum ataque à propriedade, mas sobretudo benefícios fiscais e subsídios a esta. O que está em jogo, então, é o direito das empresas e investidores ao lucro desmesurado em detrimento do direito das pessoas a uma casa para viver.

Os bens essenciais à vida devem ser objecto de regulação adequada. A resolução da crise de habitação passa pela regulação efetiva de preços e no abaixamento das rendas. É fundamental o desenvolvimento de mais habitação pública, social e cooperativa, adquirindo diretamente casas vazias e no mercado, mas a preços justos e não especulativos. A crise de habitação exige que acabem os incentivos à especulação, com o fim efetivo e real dos “vistos gold”, dos incentivos fiscais a migrantes ricos, e dos incentivos fiscais aos fundos e empresas de investimento imobiliário.

A partir de agora é preciso avaliar se queremos acreditar em mais um pacote de múltiplas medidas e promessas que ainda terão de ser transpostas (e como?) para o papel, e que, sendo tão limitadas, pouco ou nada vão significar para o alívio urgente da vida das pessoas; ou se queremos continuar a demonstrar descontentamento e a lutar até vermos a situação realmente resolvida.

Rita Silva

Artigo publicado na edição online do jornal Público a dia 18/02/2023

https://www.publico.pt/2023/02/18/opiniao/opiniao/fingir-resolucao-crise-habitacao-luta-continuar-2039417?ref=pesquisa&cx=page__content