Dos despejos ilegais

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Fátima Pedro [advogada]
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Na semana passada assistimos a um episódio público da tentativa de despejo ilegal levada a cabo por um proprietário através de uma empresa de segurança privada, por alegadamente o prédio em causa estar a ser ocupado sem a sua autorização.

Esta situação foi particularmente chocante pela sua dimensão, dada a quantidade de pessoas afectadas, pelo apoio da população e pelos meios utilizados, no caso, uma empresa de segurança privada.

No entanto, estas situações são muito mais comuns que poderíamos pensar, mas geralmente não têm o aparato deste caso, nem o recurso a empresas de segurança privada, sendo na maioria das vezes levadas a cabo pelos próprios senhorios.

Ora, independentemente dos motivos que podem até ser fundamentados, como a falta de pagamento de rendas, ou em situações semelhantes à do caso Seara, de ocupações sem título, há uma regra que em qualquer caso tem de ser respeitada:

Art. 1º do Código de Processo Civil
«Proibição de autodefesa

A ninguém é lícito o recurso à força com o fim de realizar ou assegurar o próprio direito, salvo nos casos e dentro dos limites declarados na lei.»

Queremos com isto dizer, que alguém que se veja privado do seu direito, ou queira fazer valer os seus direitos perante alguém, tem de recorrer aos tribunais para o efeito e apenas com base numa ordem judicial alguém pode ser forçado a desocupar uma habitação.

No que respeita ao caso da Seara, podemos acrescentar ainda que os actos alegadamente practicados pelos funcionários da empresa de segurança privada são proibidos pelo regime do exercício da atividade de segurança privada, que no seu artigo 5º prevê que «É proibido no exercício da atividade de segurança privada e de autoproteção: a) A prática de atividades que tenham por objeto a prossecução de objetivos ou o desempenho de funções correspondentes a competências exclusivas das autoridades judiciárias ou policiais;»

Quanto a esta matéria esperamos que as autoridades competentes prossigam com a devida investigação à actuação da empresa.

Mas estes despejos ilegais efectuados sem recurso aos tribunais sucedem com alguma frequência, sobretudo nos casos em que não há contrato de arrendamento escrito, levando a que os senhorios acobertados por esta ilegalidade se sintam no direito de proceder eles próprios aos despejos, ou por não quererem recorrer à justiça pois estão cientes que deviam ter reduzido o contrato a escrito e declarar as rendas recebidas à autoridade tributária.

Os próprios inquilinos por vezes têm a percepção que pelo facto de não terem contrato escrito não têm quaisquer direitos de defesa ou protecção e não reagem a estes abusos solicitando o auxílio das autoridades.

Ora, se é certo que a lei exige que o contrato de arrendamento seja reduzido a escrito e prevê que caso não exista, o inquilino apenas pode invocar a existência de um contrato de arrendamento com comprovativos de 6 meses de pagamento de rendas, isso não confere ao senhorio o direito de levar a cabo um despejo, seja por intimidação, mudança de fechadura ou qualquer outro método, sem recurso à via judicial.

Mesmo que o contrato de arrendamento seja nulo porque não foi reduzido a escrito, também nestes casos o senhorio tem de recorrer à via judicial para reaver o seu imóvel. Acresce que a meu ver o senhorio que invoca a inexistência de contrato escrito para despejar o inquilino actua com manifesto abuso de direito, considerando que a falta de redução do contrato escrito é na maioria das vezes da sua responsabilidade.

Seja como for, ainda que com fundamento legal para tal como a falta de pagamento de rendas pelo inquilino ou a própria nulidade do contrato de arrendamento, para reaver o seu imóvel o senhorio tem de recorrer aos tribunais.

A actuação de um senhorio, que tente por sua iniciativa efectuar um despejo, pode, conforme as circunstâncias do caso concreto, constituir a prática de um crime de violação de domicílio ou devassa da vida privada, previsto no artigo 190º do Código Penal e em alguns casos pode ainda incorrer na práctica dos crimes de ameaça e coação previstos nos Arts. 153º e 154º do Código Penal.

Em qualquer caso, com ou sem contrato escrito, mesmo com fundamento, não é lícito ao senhorio despejar alguém sem recurso aos tribunais e os inquilinos que se vejam perante estas prácticas devem pedir auxílio às autoridades, pois poderão estar eles a ser vítimas de um crime.


Edifício onde funcionava a Seara – Centro de Apoio Mútuo de Santa Bárbara emparedado após o despejo ilegal.