Distanciamento social e a desigualdade social no acesso à habitação

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Tem sido notícia nos últimos dias a ocorrência de um novo surto de covid-19, no bairro da Jamaica, no Seixal e muito se tem escrito e dito sobre a falta de respeito e do cumprimentos das normas de contenção da doença, especialmente a falta de distanciamento social no dito bairro.


Numa altura em que a população começa a “desconfinar”, têm vindo a público muitos outros surtos e focos de covid-19 e, sem surpresa, verificamos que se trata, aqui como em todo o mundo, de bairros que já antes tinham problemas sociais urgentes por resolver, talvez seja a altura de começar a olhar noutra perspectiva o distanciamento social. Se pensarmos no distanciamento sócio-geográfico entre a periferia e centro das grandes cidade sob a lente da (des)igualdade social podemos perceber que essas populações das margens vivem em distanciamento social constante das restantes classes, não tendo garantido o acesso universal a uma habitação digna que possapor sua vez garantir o direito à saúde.

Quando em Março lançámos a campanha “Como se faz quarentena sem casa”, alertámos para a necessidade de que “toda a população tenha as devidas condições necessárias para se proteger, ou seja, que todas as pessoas tenham uma casa segura onde viver com higiene e infra-estruturas básicas (água, luz, gás e saneamento).” Durante o estado de emergência foram surgindo novos focos de Covid-19 em Lisboa, com especial destaque para duas pensões sobrelotados onde viviam pessoas migrantes e refugiadas. Segundo o poder local esta era uma situação desconhecida mas a Habita enquanto associação que luta pelo direito à habitação e à cidade sempre soube de situações de sobrelotação em muitos prédios. Os valores exorbitantes da habitação em Lisboa empurram as pessoas mais desfavorecidas economicamente para situações de sobrelotação e insalubridade, à mercê das vontades dos senhorios. Sabemos que a falta de acesso a saneamento básico, a falta de água e luz, a sobrelotação das casas, os problemas de humidade e isolamento térmico, a falta de luz natural e o excesso de ruído são factores determinantes na saúde física e psicológica de quem habita as casas, no entanto os nossos dirigentes continuam a ignorar esta óbvia ligação entre habitação e saúde. Não é negado o acesso a tratamento médico a alguém que necessite mas é constantemente negado o direito a uma casa, e muitas vezes são as próprias autarquias que despejam as pessoas empurrando-nas cada vez mais para as margens ou mesmo para rua e aumentando o distanciamento social no acesso a direitos fundamentais que deveriam ser universais. Existe um tratamento diferenciado até dos hábitos culturais de ditas populações, as da periferia põe em perigo a saúde pública com o seu não cumprimento do distanciamento social quando vão ao café sem máscara, enquanto outras que vão para a praia apanhar sol (também sem máscara), sem cumprimento das regras de distanciamento social estão só a exercer o seu direito fundamental de apanhar sol numa praia apinhada de gente. Temos também que pensar que nem toda a gente pode ficar em casa a fazer teletrabalho ou a viver a quarentena de uma forma recatada e segura. Muitas pessoas continuaram a trabalhar e a ter que se deslocar diariamente para poder manter a economia familiar, sem o devido acesso a máscaras ou a possibilidade de desinfectar as mãos ou sequer a informação necessária para se prevenir de possíveis contágios. O trabalho informal é também um problema porque não dá garantias aos trabalhadores e trabalhadoras, nem a possibilidade de ficar em casa respaldado pelas medidas de apoio social.


A quarentena poderia ter sido uma oportunidade para repensarmos as políticas públicas, especialmente o acesso à habitação, saúde e educação, para agirmos contra as injustiças e desigualdades sociais e construir um novo modelo de cidade, uma sociedade mais justa e igualitária mas ao que parece importa agora saber com quem abriremos corredores turísticos para o Allgarve . É também de extrema importância garantir que os aviões cheios de gente aterrem de novo nas nossas cidades, onde por acaso também não são cumpridas as regras de distanciamento social. É importante garantir uma economia mais forte (só para alguns) que continue a ignorar a habitação como um direito fundamental e a pensar nela como mercadoria e valor de troca para fazer o capital circular de novo. Essa economia “forte” é alimentada tantas vezes pelo trabalho precário e pela exploração de populações invisibilizadas (migrantes, pessoas racializadas, mulheres). Nestas velhas políticas neoliberais as desigualdades sociais vão-se aprofundar ainda mais e as populações racializadas e marginalizadas continuaram a ser bodes expiatórios para a culpabilização individual da falta de apoio social do Estado e das instituições.


As vítimas da crise são então responsabilizadas pela sua própria condição de pobreza ou precariedade. Esta nova crise económica é já um novo estado de emergência social e corremos o risco que os comentários racistas e preconceituosos venham aumentar ainda mais o distanciamento social entre a periferia e o centro, negando o direito à cidade às pessoas que habitam as margens. É preciso ainda um longo trabalho de bases por parte da sociedade civil e das instituições para que os discursos de ódio não sejam internalizados e para que se possa fazer um trabalho político com todas e todos que lutam diariamente por condições mais dignas de vida. Os direitos fundamentais como o acesso à habitação não podem ser um privilégio de classe nem continuar a excluir pessoas com base na sua origem étnica, gênero ou nacionalidade.