Um dos temas que explodiu no 25 de Abril de 74 foi a reivindicação pelo direito a habitação. Traduzido no slogan “Casas sim, barracas não!” foi apropriado por inúmeras associações de moradores que então espontaneamente organizaram a mobilização popular por melhores condições de vida: ocupação de casas vazias para habitação mas também para instalação de creches e outros serviços comunitários, entre outras reivindicações urgentes. Cerca de 600 000 famílias, um quarto da população, vivia então em condições miseráveis, em enormes bairros de “lata” sem água, luz ou esgotos.
Dois anos depois, a Constituição consagrava o Direito a Habitação para todos, atribuindo ao Estado a incumbência de levar a cabo uma política de habitação que o garantisse, incentivando e apoiando as iniciativas das comunidades locais e das populações para resolver os problemas habitacionais e propondo até promover um sistema de rendas compatível com os rendimentos familiares.
Ironicamente, nesses mesmos dois anos nasceu e morreu um programa que procurava enquadrar e assistir tecnicamente a participação popular na resolução do problema da habitação. O SAAL (Serviço Ambulatório de Apoio Local), organizado em equipas técnicas locais, articulou comunidades e municípios para realojamentos in situ, respeitando a vida das comunidades e os seus laços de solidariedade. Não será por acaso que muitos bairros nascidos por essa altura se chamam “Bairro 25 de Abril”.
A viragem do projecto político do 25 de Abril, de uma sociedade sem classes para a reposição da ordem capitalista, acabou de vez com o ideal de democracia directa e a chamada “legitimidade democrática” acabou por vencer o movimento popular que exigia a requalificação dos bairros e a legalização das ocupações. As comissões de moradores tornaram-se um alvo fácil para a direita que foi ganhando terreno nos governos, com as soluções para a habitação a distanciarem-se dos objectivos iniciais de realojar de forma integrada e com participação dos moradores, em prol das soluções de crédito para aquisição de casa própria para alguns, deixando de fora todos quantos não tinham capacidade para se endividarem.
Só em 1993 com o PER (Programa Especial de Realojamento) foi retomado o objectivo político de erradicação de barracas: foram desde então construídos grandes bairros para o realojamento de quase 50 000 famílias nas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto. Realojamentos massivos em bairros periféricos e guetificados, quando já toda a teoria social condenava este modelo. Nunca terminado, o PER deixou muita gente ainda de fora: em 2018 o governo identificava ainda mais de 26 000 famílias a viver em grande precariedade. Muitas destas famílias vivem ainda hoje em barracas, como antes do 25 de Abril. Pessoas que eram crianças nessa altura, são agora avós e continuam a ouvir que não há solução para elas.
Agora, em tempo de pandemia e de aconselhamento ao confinamento em casa, mais gritante se torna a insuficiência do que em 46 anos foi feito.
‘Lisboa, o Direito à Cidade’ (1974) de Eduardo Geada
‘CASAS PARA O POVO / HOUSES FOR THE PEOPLE’ (2010) de Catarina Alves Costa