** de Hamish Kallin e Tom Slater
Somos a favor do controlo das rendas. Acreditamos que o desejo de lucro, fundamentalmente, leva a uma queda dos padrões de qualidade da habitação e gera escassez. Antes que possamos afirmar isso com confiança, no entanto, queremos refutar três mitos predominantes que se repetem nos argumentos contra a regulação do arrendamento. Num livro dedicado à memória das greves de arrendamento em Glasgow – e às lições a retirar delas – parece apropriado apontar que, em certa medida, esses argumentos já foram refutados pelo conhecimento comum. O aumento das campanhas em torno do direito à habitação (seja através da campanha Living Rent na Escócia, Radical Housing Network em Londres, as mães da FOCUS E15, a agitação dentro dos partidos políticos, etc.) demonstra quão inapta é a lógica de “mais do mesmo”. A função política de uma greve às rendas, ou mesmo a ameaça de uma, é a afirmação de uma verdade simples: são aqueles que vivem numa casa que sabem o que nela está errado e que têm de viver com as consequências, numa medida muito maior do que os proprietários desta habitação. Procuramos aqui somar a nossa voz às desses movimentos, questionando o mito de que o controlo do preço do arrendamento vai ameaçar a qualidade, a oferta e a eficiência do sector habitacional.
O argumento da qualidade é este: o controlo dos preços do arrendamento afecta o padrão de qualidade das casas do lado da oferta, então, se um proprietário não puder aumentar o arrendamento tanto quanto deseja, é provável que economize na manutenção ou, pior ainda: que não tenha fundos suficientes para fazer a manutenção necessária, mesmo que queira. A falha mais óbvia de tal argumento é que a qualidade da habitação no mercado de arrendamento privado já é atroz. Na verdade, é o pior de todos os arrendamentos: um em cada três inquilinos, de acordo com as pesquisas sobre pobreza mais sofisticadas, vive em habitações estruturalmente inadequadas (Lansley e Mack 2015). Isso é confirmado pelos próprios relatórios do governo: quase um terço dos alojamentos para arrendamento privado não cumpre padrões do governo para habitação decente (Parlamento do Reino Unido, 2016). The Housing Charity Shelter (2014, 7) relata que:
«Mais de 6 em cada 10 inquilinos (61%) tiveram pelo menos um dos seguintes problemas na sua casa [arrendada a um particular] nos últimos 12 meses: humidade, mofo, infiltrações no telhado ou nas janelas, riscos eléctricos, infestações de animais e fugas de gás. Dez por cento dos inquilinos disseram que sua saúde foi afectada pelo proprietário não se ocupar das reparações e devido às más condições da habitação no ano anterior, e 9 por cento dos inquilinos com crianças disseram que a saúde das mesmas foi afectada.»
Além disso, nas décadas anteriores à intervenção na habitação pública (quando a grande maioria da população do Reino Unido arrendava para uso privado), os padrões de qualidade eram ainda piores. O impacto do liberalismo “laissez faire” nos padrões de habitação foi simplesmente terrível, sendo comuns as condições de marginalização e superlotação nas cidades britânicas, onde havia uma transferência vertical de riqueza dos mais pobres para os mais ricos, através do arrendamento (Rodger 1989). O argumento de que o controlo dos preços do arrendamento pioraria a qualidade das casas, portanto, não se sustenta em ambas as direcções: sempre que houve pouca ou nenhuma regulamentação, a qualidade das casas para arrendamento foi péssima. John Wheatley deixou isso claro em 1923, um ano antes de apresentar ao Parlamento um projecto de lei que financiava a construção de mais de meio milhão de unidades habitacionais públicas:
«Se a iniciativa privada nos tivesse fornecido cidades limpas ou saudáveis e pessoas sãs, agora não teríamos outra coisa que não cidades limpas e pessoas saudáveis, porque nunca tivemos nada para além de iniciativa privada» (citado em Damer 2000a, 95).
Wheatley sabia, em primeira mão, que as condições nos bairros marginais da região de Clyde eram desumanas. A superlotação nas cidades escocesas no início do século 20 (antes da interferência da “burocracia” da regulamentação estatal) era crónica, a construção de casas era ineficiente e os despejos eram comuns (Rodger 1989). Glasgow em 1900 estava tão perto das condições de um “mercado livre perfeito” para o mercado imobiliário como desejavam pessoas como Niemietz: sem habitação pública, sem regulamentação dos padrões de habitação, sem monopólio nas mãos de um único proprietário e praticamente sem qualquer protecção dos direitos dos inquilinos. Mas os arrendamentos eram altos e as condições terríveis (McCrone e Elliot, 1989), com proprietários de bairros marginais aglomerando inquilinos em escadas, pátios e becos; negando-lhes acesso à luz, água ou a dignidade (Gauldie 1976). Os “luxos” como segurança contra incêndios, água canalizada, aquecimento central, casas de banho interiores, tectos impermeáveis, para citar apenas alguns, foram conquistados através da luta política ao longo das décadas que se seguiram e apenas foram normalizados pela legislação. E, como de forma tão terrível ficou demonstrado pelo incêndio na Torre Grenfell no Verão de 2016, os “incentivos ao lucro” tomam sempre os atalhos que podem. Apenas regulamentação que é aplicada de forma eficaz pode manter os padrões mínimos de habitação digna. É absurdo dizer que a introdução de uma regulamentação modesta sobre o arrendamento pioraria esse problema de qualidade. Isto é muito claro no caso dos Países Baixos, onde o aumento anual da renda permitido está condicionado ao padrão de habitação em arrendamento. O resultado é um parque habitacional para arrendamento em melhor forma do que em países que não têm controlo do arrendamento (Olsen 1988; Anas 1997; Kutty 1996).
O segundo mito que queremos abordar diz respeito à questão da oferta. Diz-se que se os arrendamentos estivessem limitados, haveria menos pessoas a darem-se ao trabalho de se tornar proprietários, os proprietários existentes retirariam as suas propriedades do mercado e menos construtoras se dariam ao trabalho de construir. O resultado seria uma restrição na oferta de casas novas para alojamento, o que agravaria ainda mais a crise imobiliária que já vivemos. Esta é a lógica neoclássica escrita em larga escala e um argumento profundamente perturbador por duas razões. Em primeiro lugar, ele admite inconscientemente que o mercado de arrendamento só é viável enquanto as pessoas puderem ser exploradas para além das suas possibilidades, uma fórmula baseada na ganância parasita. Em segundo lugar, implica que qualquer redução nos lucros de um sector interromperá o investimento. É o mesmo que acreditar que o salário mínimo provoca uma diminuição na contratação de pessoal pelas empresas, ou que o IVA significaria que a ninguém compensaria vender nada, ou que o Imposto sobre o Petróleo (Fuel Duty) faria com que ninguém voltasse a conduzir; por outras palavras, é uma afirmação fantasiosa, pois baseia-se na noção de que as pessoas apenas querem ganhar dinheiro com uma rentabilidade totalmente ilimitada. Tal hipótese é, mais uma vez, uma utopia a-histórica (nunca existiu). O rápido declínio do mercado de arrendamento privado na Grã-Bretanha, durante grande parte do século XX – de 90 por cento no início para 14 por cento na década de 1970 (Stafford 1976, 3) – foi claramente influenciado pelo controlo do arrendamento, mas seria simplista afirmar que esta foi a única causa. O mercado de arrendamento encolheu em duas frentes: o investimento na habitação pública (resultado de décadas de luta organizada) ofereceu a muitos inquilinos da classe trabalhadora a sua primeira habitação decente, ao mesmo tempo que a ênfase incessante na “naturalidade” da posse de habitação própria legitimaram (e ajudaram a financiar) as aspirações da classe média. Sugerir, então, que um declínio no sector privado de arrendamento é em si uma crise, é errado. Da mesma forma, não é apropriado sugerir que a expansão do mercado de arrendamento privado nas últimas décadas se deve apenas à abolição do controlo de arrendamento. Está bem documentado o efeito de décadas de redução drástica no parque de habitação pública, juntamente com a estagnação dos salários e o aumento dos preços das casas, deixou as pessoas com poucas alternativas (Meek 2014). Por outras palavras, o aumento da oferta de arrendamento privado é um sintoma da actual crise imobiliária, não a sua solução.
Portanto, é lógico que questionemos a existência do próprio mercado de arrendamento privado. Se a crítica mais contundente ao controlo de arrendamento é que este reduz a oferta (o sector e o tamanho do mercado de arrendamento privado), é muito tentador responder dizendo: “Ainda bem!” Com a relação de exploração inata, a renda privada é uma forma parasitária de acumulação que canaliza a riqueza de baixo (das classes populares trabalhadoras) para cima. Alimenta a crescente desigualdade e dá-lhe uma permanência geracional. Nesse sentido, a redução do mercado de arrendamento privado dificilmente pode ser considerada uma tragédia humanitária, se ao mesmo tempo torna necessárias e urgentes outras formas desmercantilizadas de acesso à habitação. O argumento da “oferta” necessária só faz sentido se negar todas as outras formas de construção e posse de casas e ignorar a possibilidade de propriedade colectiva. Infelizmente, ouvir as palavras “controlo do arrendamento” é profundamente perturbador para as pessoas que acreditam em mercados “livres” e competitivos, direitos de propriedade privada e a lógica da economia de trickle down. A grande maioria dos economistas, mesmo alguns de esquerda como Paul Krugman (que destruiu o controlo do arrendamento numa coluna do New York Times em 2000), são treinados a pensar de forma neoclássica, obstinados a manter o equilíbrio através da oferta e da procura. Essa perspectiva tornou-se tão hegemónica que os economistas neoclássicos se apressaram a enquadrar as consequências da crise financeira de 2008 como um momento de “recuperação”, em vez de um momento crucial para impulsionar mudanças necessárias, estruturais ou institucionais (Mirowski 2013).
Finalmente, chegamos ao Santo Graal da “eficiência”. Para os economistas neoclássicos, algo é ineficaz se interfere “artificialmente” no funcionamento “natural” do mecanismo de preços de mercado. O controlo do arrendamento é considerado uma forma de fixação de preços que terá consequências prejudiciais por fomentar o problema dos “inquilinos em posse” que irão (a) impedir que aqueles que estão fora do mercado imobiliário de arrendamento ganhem um ponto de suporte nele e (b) afectar o funcionamento de um mercado de trabalho “dinâmico”, uma vez que se irão recusar a mudar-se para aceitar qualquer oferta de trabalho noutro lugar (dado que teriam que desistir das suas casas de baixo custo, se o fizessem). Um exemplo desse tipo de raciocínio esteve presente na campanha para as eleições gerais de 2015 no Reino Unido: num momento em que o Partido Trabalhista levava muito a sério os custos reais de habitação e propunha um limite máximo aos aumentos do arrendamento, o Institute of Economic Affairs publicou um relatório intitulado The Flaws in Rent Ceilings (Bourne 2014) [As falhas nos tectos de arrendamento]. À maneira de uma cruzada contra todas as formas de regulamentação do arrendamento em qualquer lugar, o relatório argumenta que “sob o controle do arrendamento, há menos investimento porque as famílias reduzem a sua procura por casa, exacerbando assim a falta de habitação para outros”(Bourne 2014, 16). O tom do documento cresce quando, algumas páginas depois, surge esta afirmação espectacular: “a verdade parece ser que os inquilinos não estão dispostos a pagar por maior segurança” (Bourne 2014, 25), concluindo que qualquer segurança adicional “para inquilinos [na forma de controlo de arrendamento]” é dada à custa da redução da eficiência económica” (Bourne 2014, 35). A “solução” proposta é aumentar a oferta de casas livrando-se de qualquer interferência governamental no competitivo mercado habitacional, que deve ser capaz de operar sem restrições incómodas para proporcionar um incentivo a produtores e consumidores, “optimizando” o seu comportamento e impulsionando o mercado para o equilíbrio, ao mesmo tempo em que é obtido o máximo de utilidade para o máximo de pessoas.
O problema deste argumento da eficiência não é apenas a suposição de que os consumidores de baixos salários são livres para “escolher racionalmente” onde querem viver, sem quaisquer restrições estruturais nas suas vidas, mas também a maneira como pende para os interesses dos proprietários: “Os proprietários, num regime de arrendamento seguro, enfrentariam a perspectiva de ter “inquilinos problemáticos” com maior segurança de posse, fazendo com que a gestão do risco através rotatividade fosse mais difícil.” (Bourne 2014, 25). A gíria é importante: “gestão de risco através da rotatividade” é uma forma muito educada de descrever despejos, e um “inquilino problemático” é alguém que não pode pagar a renda. Se nos preocupamos com a habitação como questão de justiça social, devemos tratar os argumentos da eficiência com a máxima cautela. A “eficiência” real certamente não é alcançada quando viver de arrendamento representa 50% do rendimento familiar, quando as famílias têm menos dinheiro para gastar noutras necessidades (e luxos) e quando o Estado sofre com hemorragias de 35 bilhões de libras por ano em subsídios a proprietários privados através das ajudas para pagar o arrendamento. Na escolha entre o medo da fixação de preços e a preocupação com o bem-estar humano, a base de uma política de habitação humana e sensível deve estar do lado desta última.
** Este texto, escrito investigadores e professores da Universidade de Edimburgo Doutor Hamish Kallin e Doutor Tom Slater, faz parte de um volume intitulado Rent and Its Discontents. Baseia-se no contexto do Reino Unido e nas disputas teóricas e ideológicas que determinaram e continuam a determinar o debate em torno do controlo de preços hoje. Acreditamos que os contra-argumentos usados aqui para desmontar os falsos argumentos neoliberais contra o controlo do arrendamento são completamente úteis para entender o contexto catalão também. A ideologia e o interesse de classe funcionam de maneiras muito semelhantes em todo o mundo. A ciência e o pensamento crítico ajudam-nos a acabar com a ignorância.
Fonte: Sindicat de Llogateres Publicado a 8 de setembro 2020 com o título "Desmuntem els mites sobre la regulació dels preus del lloguer" acessível em: https://sindicatdellogateres.org/desmuntem-els-mites-sobre-la-regulacio-dels-preus-del-lloguer/ Tradução livre do catalão: Laura Almodovar