Em Março de 2019, antes da aprovação da Lei de bases da Habitação, a Habita! analisou as propostas políticas em discussão (do PS, PCP e BE) segundo os pontos que consideramos serem fundamentais para efectivamente garantir o Direito à Habitação. Clica aqui para aceder ao nosso artigo.
Quatro décadas após a inscrição do direito à habitação no artigo 65º da Constituição Democrática do Estado Português de 1976, Portugal ainda não dispunha de uma lei que operacionalizasse esse mesmo direito. No meio de uma crise habitacional que atravessa a maioria dos sectores da sociedade, e face à repolitização deste domínio[1]A visita de 2016 e o relatório de 2017 da Relatora Especial da ONU para o Direito a uma Habitação Condigna (ver Fahra, 2017) também desempenharam um papel importante., a Assembleia da República lançou, em 2017, um processo que culminou com a recente aprovação da Lei de Bases da Habitação (Lei 83/2019, de 3 de Setembro; daqui em diante designada por Lei)[2]Note-se que a versão em inglês disponível no website do Parlamento Português (disponível neste link e usada como referência para o presente texto), traduz literalmente, e de forma enganosa, a Lei de Bases para ‘Lei Básica’ (leis básicas têm poder constitucional, e este não é o caso aqui.
O que se segue é uma avaliação do texto da Lei, numa perspectiva mais ampla, fazendo um balanço dos trabalhos académicos recentes sobre as condições e a política de habitação portuguesa[3]Em particular: o relatório de Leilani Fahra (2017) e um comentário crítico recente (Morais et al., 2018); alguns ensaios curtos incluídos num volume especial de Cidades: Comunidades e Territórios (Allegra e Tulumello, 2019; Allegra e Colombo, 2019; Tulumello, 2019); e um livro recente sobre a financeirização da habitação (Santos, 2019). e da experiência da Habita no apoio às lutas pelo direito à habitação. Em síntese, apesar de constituir um importante passo em frente na construção de uma política e de um quadro jurídico nacionais, a Lei não constitui um quadro robusto que possa ser mobilizado concretamente na defesa do direito à habitação – sendo as componentes mais fracas as disposições sobre a protecção jurídica do direito à habitação e sobre as protecções no contexto do despejo.
A Lei tem o objetivo ambicioso de fornecer a política e os instrumentos legais para garantir o direito à habitação. Além da importância simbólica da sua aprovação, a Lei mostra uma série de características positivas, especialmente no que diz respeito ao papel positivo do Estado como promotor do direito à habitação através de políticas de habitação: a habitação é considerada na intersecção de diversas áreas de ação pública, desde a provisão direta (e obras públicas), à política e planeamento urbano; e o direito à habitação está interligado com o direito ao habitat, ou seja, aos serviços, instalações e transporte – a seção sobre o direito ao habitat (§14-15) está entre as mais simples na afirmação das obrigações do Estado em atender às necessidades urbanas básicas. A introdução de programas nacionais e locais de habitação (§17) é uma disposição crucial para a operacionalização da ação estatal neste campo.
A Lei, no entanto, fica aquém das disposições legais que poderiam ter protegido proativa e reativamente o direito à habitação. Em geral, a maioria das seções do texto é enquadrada por uma linguagem que deixa amplo espaço para interpretação e discricionariedade: por exemplo, o estado “incentiva”, as disposições são aplicadas “sempre que possível”, e expressões similares. A este respeito, é importante lembrar que as leis de bases portuguesas visam, acima de tudo, estabelecer as orientações gerais da acção legislativa e executiva, devendo ser complementadas por regulamentos específicos e legislação complementar – neste caso, a ser elaborada no prazo de 9 meses a contar da publicação (§68).
Ainda assim, é da nossa opinião que a Lei poderia ter sido mais direta e inequívoca numa série de provisões. Este é particularmente o caso dos artigos relativos à protecção jurídica e à protecção dos despejos:
Assim, nesta fase, por um lado, a lei dificilmente pode ser eficazmente mobilizada em processos judiciais para defender o direito à habitação de indivíduos, famílias ou grupos. Por outro lado, as disposições relativas à protecção das famílias vulneráveis só se tornariam efectivas com uma reforma significativa e reinvestimento nos serviços sociais – considerando o estado concreto desses serviços, parece ser urgentemente necessária uma protecção mais forte contra o despejo. Em todo o caso, é importante recordar que uma avaliação completa e final só será possível após a aprovação da legislação complementar.
Um dos aspectos positivos da lei é que ela é abrangente e inclui disposições sobre praticamente todos os aspectos da habitação, política de habitação e direito habitacional – mas, mais uma vez, nem sempre são tão simples e eficazes quanto poderiam ter sido.
Elaborado por Simone Tulumello (Universidade de Lisboa, Instituto de Ciências Sociais) e pela associação Habita (www.habita.info/), a pedido de Gunnar Theissen (Gabinete do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos) // 14 de Outubro de 2019
Allegra M., Colombo A. (2019), A governança das políticas de habitação: (co)produção do conhecimento e capacitação institucional, Cidades: Comunidades e Territórios, 38: 8-13.
Allegra M., Tulumello S. (2019), O estado da habitação: introdução ao dossier, Cidades: Comunidades e Territórios, 38, iii-ix.
Fahra L. (2017), Report of the Special Rapporteur on adequate housing as a component of the right to an adequate standard of living, and on the right to non-discrimination in this context Mission to Portugal, 2017. Available at http://ap.ohchr.org/documents/dpage_e.aspx?si=A/HRC/34/51/Add.2.
Morais L., Silva R., Mendes L. (2018), Direito à Habitação em Portugal: Comentário crítico ao relatório apresentado às Nações Unidas 2017, Revista Movimentos Sociais e Dinâmicas Espaciais, 7(1): 229-243.
Santos A.C. (ed.) (2019), A nova questão da habitação em Portugal: uma abordagem de economia política. Coimbra: Almedina.
Tulumello S. (2019), O Estado e a habitação: regulação, financiamento e planeamento, Cidades: Comunidades e Territórios, 38: 1-7.
Notas[+]
↑1 | A visita de 2016 e o relatório de 2017 da Relatora Especial da ONU para o Direito a uma Habitação Condigna (ver Fahra, 2017) também desempenharam um papel importante. |
↑2 | Note-se que a versão em inglês disponível no website do Parlamento Português (disponível neste link e usada como referência para o presente texto), traduz literalmente, e de forma enganosa, a Lei de Bases para ‘Lei Básica’ (leis básicas têm poder constitucional, e este não é o caso aqui |
↑3 | Em particular: o relatório de Leilani Fahra (2017) e um comentário crítico recente (Morais et al., 2018); alguns ensaios curtos incluídos num volume especial de Cidades: Comunidades e Territórios (Allegra e Tulumello, 2019; Allegra e Colombo, 2019; Tulumello, 2019); e um livro recente sobre a financeirização da habitação (Santos, 2019). |