A Dulce Dengue foi uma das moradoras do Bairro do Catujal que foi despejada ilegalmente no início de março 2021. No final desse mês, o mesmo tribunal que ordenou o despejo, revogou essa ordem e ordenou a restituição das casas à família reconhecendo a ilegalidade cometida. Mas isso ainda não aconteceu, tendo o senhorio recorrido da decisão e não tendo o caso voltado a ser apreciado pelo tribunal. A Dulce continua num limbo: o tribunal deu-lhe razão mas ainda não lhe foi permitido regressar à sua casa. Há 5 meses que a Dulce e a sua família vivem em alojamentos temporários: primeiro em Vila Franca de Xira, depois na Amadora, e em breve em Sintra. O impacto que esta situação de violência e instabilidade tem na saúde mental e física de qualquer adulto ou criança está mais do que documentada em inúmeros estudos: deixa marcas tão profundas que não são removidas apenas com a resolução da situação habitacional.
Por isto e por todas, partilhamos abaixo a carta que esta mãe enviou hoje às Secretarias de Estado da Habitação e da Acção Social. SOLUÇÕES EXISTEM!
Bom dia Sras Secretárias de Estado,
Eu sou a Dulce Dengue e como sabem fui despejada em Março. Estive alojada pela SS uma noite no Estoril, depois fomos mudados para um Hostel em Vila Franca de Xira onde estivemos quase 2 meses, agora encontro -me numa residencial na Amadora e vou ser mudada novamente dia 12 de Agosto, para um abrigo emergencial da SS. Tenho um bebê de 1 ano e 11 meses que vai ser operado no próximo mês e nem sei quais as condições que me espera nesse abrigo.
Escrevo esta carta com lágrimas nos olhos e com um vazio enorme dentro de mim. Isto, estas palavras, são um grito de SOCORRO. Eu preciso de ajuda.
Uma das coisas que devem entender é que eu não quero uma casa social só para pagar pouco, não quero uma casa social só por capricho, eu quero uma casa social porque PRECISO, porque não tenho outro modo de ter uma casa!
Eu sou mãe numa família monoparental com 4 crianças a cargo, e uma adolescente que sonha ir para a faculdade fazer contabilidade. Digo sonha porque por mais que eu trabalhe não consigo encontrar uma casa com um valor acessível para viver dignamente. Eu tenho 5 pessoas a meu cargo a estudar porque queremos ter uma vida melhor mas com os preços praticados hoje em dia na habitação isso é impossível. E sabem o quê isso origina? Revolta, e essa revolta pode dar origem comportamentos desviantes, e sem dúvida deixa marcas e traumas profundos, e não é isso que quero para os meus filhos.
Eu tenho o sonho de voltar a estudar e fazer faculdade, mas todo o dinheiro que eu ganho a trabalhar será gasto numa renda exorbitante e despesas com a casa. O salário não chegará para sustentar esse meu sonho. E o que quê isso origina? Frustração e revolta.
Foi me proposto pela Segurança Social procurar uma casa de acordo aos meus rendimentos, que pra mim seria uma casa num valor que ronde os 350€, onde posso encontrar uma casa por esse preço? Não há.
Venho então apelar que me ajudem POR FAVOR a poder dar uma vida digna e estável aos meus filhos, preciso de apoio para poder criar estas crianças que se tornarão em adultos educados, humildes e benevolentes. Ajude-me a apagar este trauma que perdura há 4 meses.
Eu estou a pedir -lhes AJUDA, num grito já cansado de SOCORRO, porque não sei mais como lidar com todos os sentimentos presentes em mim há 4 meses. Não sei como lidar com as lágrimas dos meus filhos porque não sabem quando irão pra casa. Não sei como lidar com esta incerteza de vida, com esse vai ali e vem aqui e por não saber mais lidar com nada disto as vezes sinto-me sem forças para continuar a lutar.
Eu só quero dar uma vida digna aos meus filhos. Eu só quero viver dignamente. Os meus filhos não podem continuar a viver assim. São CRIANÇAS, que neste momento estão praticamente sem nenhum dos seus direitos. Não conseguem brincar, não conseguem socializar, não conseguem ser CRIANÇAS.
Ninguém em Portugal consegue viver com o salário mínimo. Eu não posso ganhar 665€ e pagar de renda 600€. Como alimento as crianças? Como pago a água? A luz? O gás? A televisão?
Uma casa social pra mim não é um capricho, é uma necessidade URGENTE.
Venho por tanto pedir-vos que me possam dar alojamento numa casa temporária, como no caso do programa de Apoio ao Alojamento Urgente- Porta de Entrada, até conseguir finalmente aceder a uma casa com renda apoiada. O abrigo para onde nos querem encaminhar agora não é um sítio adequado para as crianças que já sofreram tanto com esta situação, peço-vos encarecidamente que tomem em consideração o bem-estar delas e como temos sofrido terrivelmente com toda esta incerteza de não sabermos onde vamos ficar.
Obrigada por dispensar alguns minutos a ler-me, desculpem invadi-las desse jeito mas já me sinto tão sem forças, tão sem esperanças, que a única alternativa que tenho é este apelo URGENTE.
Eu rezo todos os dias por si e por todos aqueles que conseguem pôr a cabeça na almofada e dormir tranquilamente sabendo que há pessoas a viverem como eu, rezo por todos aqueles que podem ajudar mas não o fazem.
#oamorsalva
Obrigada,
Dulce Dengue